quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Dentro dela

Aquele par de pequenas mãos se retorcia feito uma bailarina que buscava a vértebra impossível sobre o palco, um travesseiro na cama desarrumada pelos nossos corpos dentro daquele quarto onde Priscila dormia, ao menos na maioria das noites. Fazia frio naquela manhã em Porto Alegre apesar de agosto e quase setembro, uma daquelas alvoradas de céu pleno que justificam janelas abertas. Eu estava prestes a redescobrir o mundo pelas mãos de Priscila.

(Ela tinha pequenas mãos e pés compridos e magros, as unhas negras-negras, os lábios sob forte vermelho, trazia da adolescência alguma rebeldia no sorriso e em um piercing que brilhava pouco abaixo da vista direita, em cima de uma das bochechas, os cabelos longos e muito escuros, suaves omoplatas, perversas clavículas e não naquela ocasião mas com frequência marcante cílios postiços e fortes sombras nos olhos. Fumava marlboros vermelhos e preferia Stooges a Chico Buarque. Quando criança queria ser fada-madrinha, porém acabara prestando vestibular para antropologia. Contava em seu corpo naquela nascente manhã sete tatuagens.)

As mesmas mãos, horas atrás, seguravam um par de latinhas de cervejas levemente ordinárias com a graça dos embriagados enquanto Priscila atravessava a transatlântica sala da casa dos pais de Rubão, um amigo em comum riquíssimo e que gostava de dar festas sempre que seus pais viajavam. Eu estava na festa porque nos últimos quatro meses eu estava trabalhando em turnos diários de mais de oito horas em uma assessoria de imagem que cuidava de políticos - ano eleitoral, quando a gente ganha dinheiro - e precisava de diversão, qualquer diversão, mesmo diversão melancólica. Priscila abriu seu melhor sorriso, que acerto era aquele batom vermelho!, exclamando meu nome em seguida pois que ela era uma dessas pessoas que exclamam.

Priscila gozava de relativa fama entre nosso círculo de amizades, pois havia sido fotografada nua em uma revista de distribuição nacional há quatro edições atrás, era uma tripgirl, para aqueles mais entendidos. Ela fez questão de me enviar para casa pelo correio uma edição autografada da revista. Pude quase sentir o olhar de cinco caras que conversavam próximo a mim quando ela exclamou meu nome, me oferecendo uma das latinhas e um estalado beijo no rosto tão exclamativo quanto, aqueles caras vestindo calças skinnies e barbas aparadas por especialistas. Ela fez um tipo de olhar diabólico e completou o beijo com uma voz rouca, hoje você é meu, Leandro, todo meu. Sete latinhas, duas doses de tequila e três taças de espumante mais tarde eu era dela literalmente de tal modo que ela interrompeu o beijo de língua para ordenar que fôssemos para sua casa, aquela festa já tinha dado o que tinha que dar - agora é a minha vez, ela disse piscando um olho.

(Bem antes de ser tripgirl, quando ainda contava apenas quatro das atuais sete tatuagens, Priscila me foi apresentada numa mesa de bar pelo seu então namorado. O namoro já estava em frangalhos, porém, vim a saber quando a encontrei uma semana depois sozinha numa sessão de cinema, que virou uma esticada na lanchonete da esquina para comer um xis e mais três cervejas. Foi quando de fato surgiu a amizade, a intimidade, as trocas de emails, uma cumplicidade própria de nós dois. Houve também algum flerte e beijos trocados em uma noite de chuva, porém nada de maior consequência até então.)

Estávamos agora em seu quarto, a claridade do dia atravessando a janela e atingindo a nós, eu de joelhos e ela de gatinha, a bunda arrebitada contra minha pélvis, as costas tão nuas e suas mãos, voltemos a elas, pois é na dança impossível executada pelas falanges das mãos de Priscila que descobri, antes sentindo numa vertigem, que aquela mulher tão linda estava prestes a gozar. Havia, decerto, algo em mim, um certo orgulho de macho pelo fato de Priscila, capa de revista & matéria de desejo dos homens que a conheciam, ser aquela mulher diante de mim, como havia sido na festa antes quando caminhou de mãos dadas até o táxi, me agarrando no elevador e contra a porta de seu apartamento logo em seguida. Havia a vitória sobre aquelas calças skinnies e barbas bem feitas e seus celulares multifuncionais e seus carros importados e seus tumblrs que eram acessados e comentados pela minha chefe. Havia alguma raiva e rancor. Havia.

Só que havia Priscila e naquele instante, pela primeira vez, me dei conta de que só havia Priscila e mais nada além de Priscila e seu corpo, Priscila desnuda, Priscila que se oferecia a meu prazer, Priscila que cerrava um dos punhos e esmurrava o colchão e logo após a cabeceira da cama, a vertigem de mergulhar fundo em Priscila e suas costas nuas, seu cabelo em desalinho, suas omoplatas agora dissolvidas em carne, Priscila, a mulher a quem eu penetrava e agora se mostrava mais viva do que eu nunca pudera compreender. A outra mão se estatelou na cabeceira e a mulher pressionava com força a madeira com os dedos abertos, os músculos do braço direito retesados e então a cabeça se levantou do travesseiro para que sua voz me alcançasse com um comando, vem.

(Há algo fascinante na imagem de uma mulher gozando. Os franceses, por exemplo, denominam o orgasmo de La Petite Mort, A Pequena Morte, talvez porque, como na morte, o corpo atravessa uma experiência de verdade física absoluta. Essa verdade, expressa em músculos e líquidos, atinge o nosso corpo, nós, os homens, com uma clareza instantânea. É óbvio e até notório que mulheres fingem orgasmos quando lhes parece conveniente, porém a experiência verdadeira é de outra ordem. Pobre do infeliz que trepa tendo em vista apenas seu particular e ridículo pênis, esse pênis mesquinho que jamais chegará a pica, caralho ou pau. Perde o melhor da festa: a mulher. Não existe nada mais gostoso do que uma mulher, caras, salvo uma mulher em vias de gozar.)

De algum modo eu fui hábil o bastante para decifrar os signos que ela me oferecia e eu sabia que a ordem, vem, ela repetiu já com menos voz e mais vogais, dizia a mim para manter o ritmo alterando a força, ela queria me sentir mais exato, mais bruto, o choque contra suas ancas, o atrito do músculo a lhe abrir a buceta, ela queria tudo, queria tudo porque eu era dela, todo dela. Foi pouco após eu enrijecer o ritmo que o corpo de Priscila, a loucura de Priscila, aquela pequena morte de Priscila tomou conta de toda a situação e vislumbrei num átimo cada vértebra, cada feixe de músculo, cada dobra da pele se unir num movimento preciso que a fez grunhir e cegar e me prender tão inteiro e firme dentro dela que a minha própria razão foi exaurida naquele movimento e só me restou o instinto mais básico, de me agarrar à sua cintura e com seu nome caindo de meus lábios, jorrar.

Levei algum tempo extenuado a seu lado, buscando oxigênio, buscando palavras, buscando um novo centro de gravidade para o homem que eu era então, aquilo que eu havia sido antes de Priscila buscar o meu corpo para aconchego e calma. Eu poderia jurar que ela sorria, um riso que eu reconheci imediatamente inédito porque nosso, e aquela manhã nunca mais seria outra manhã, aquela Priscila já devia ser a minha Priscila, e ela seria a minha Priscila pelo tempo em que nos amássemos e até o dia em que não nos amássemos mais eu só seria feliz de verdade na condição particular de estar dentro dela.

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