Horácio não era homem de mentiras. Tinha quase completos 67 anos e estava na prática do jornalismo desde cedo, com 19 anos já dava expediente nas redações cariocas. Aos 21 descobriu um esquema de fraudes que custou a carreira de um coronel do exército e três meses preso nos porões na Rua da Relação. Ao cabo do período em que esteve preso, fugiu para o exílio de onde só conseguiu voltar ao país com a Anistia, onze anos depois. Desde então, Horácio é uma das grandes vozes do jornalismo esportivo nacional e referência para estudantes de jornalismo e focas em geral, é um desses caras chamados para palestras, formaturas. Trocou o Rio por São Paulo há quinze anos por conta do trabalho e da segunda esposa. Encontra-se em seu terceiro casamento e em sua quarta tentativa de largar o tabagismo.
As luzes se apagaram no estúdio ao final da transmissão e Horácio deu um grande suspiro. Que semana desgraçada, ele pensava consigo. Em pleno 2014 ele ainda precisava ler no noticiário gente passando pela situação de ser detida em inquéritos montados de forma pelo menos questionáveis. Quase trinta pessoas, um fuzuê, teve gente pedindo asilo político no exterior. Horácio lembra da campanhas das Diretas, lembra da fundação do partido que está no poder em Brasília, lembra que conhece muitas das pessoas do partido que poderiam vir à cena e perguntar, ao menos, qual é? Ele conhecia alguns dos manifestantes prontamente levados à estampa de suspeitos e terroristas; dois deles haviam sido seus estagiários, de uma outra ele havia sido editor-chefe.
Na seara do futebol, onde Horácio labuta com seu jornalismo,
a CBF preferiu ignorar a goleada vexatória que a Seleção tomou na Copa, dentro
de casa, os clubes falidos por adminastrações escabrosas, os jogos modorrentos
em estádios vazios, as torcidas organizadas transformando clássicos locais em
batalhas urbanas e apenas nomeou um cidadão simpático a quem estava no poder da
confederação para comandar a Canarinho rumo às Olimpíadas e pra próxima Copa.
As notícias ruins choviam, e ele se abateu com elas – raramente acontecia mas
dessa vez aconteceu.
Levantou-se da bancada e caminhou para o elevador, em silêncio, deu um aceno aos outros três colegas de bancada já de pé, mas estava meio flutuando em seus próprios pensamentos. Meio grogue. Estava aguardando o elevador chegar ao andar para passar na redação, dois andares abaixo e conferir se a sua esposa havia ligado. Helena, esposa de Horácio, tivera uma indisposição estomacal durante a noite e o sono do casal quase não houve – o que certamente contribuiu mais um pouco no estado de borocoxô do velho jornalista.
Um dos colegas de bancada, o Rubens, um amigo desde os anos 70 na verdade, o alcançou. “Tudo bem contigo, cara?” Horácio fez um meneio com a cabeça que não disse muita coisa. “Dormi mal, a Helena vomitou a noite toda, quase não venho pra redação hoje. Mas essas notícias aí das prisões, eu precisava saber mais detalhes, liguei pro Souza e pro Dedé lá no Rio, mas eles desconversaram e tal. Isso me deixou puto. E triste. A gente se conhece há trinta anos, caralho.” “E você não falou comigo antes, cara?” “É, sei lá, desculpa, Rubão, estou nada bem hoje. Você viu no ar, foi foda.” E silenciaram. Rubens deu um tapinha nas costas do amigo e ambos entraram no elevador. Desceram na redação, já vazia. Só alguns produtores presentes arrumando material pra última edição do noticiário que já estava no ar. “Aquele chopinho hoje, Rubão?” Rubens assentiu com um polegar em positivo – era uma tradição não escrita dos dois passar numa choperia que ficava a duas quadras da redação toda quinta após a mesa redonda, uma garantia de que quando se estranhavam no ar, a amizade se conservava mesmo assim.
XX----XX
Quatro chopes mais tarde, Rubens disse que precisava ir pra casa. “Você também, rapaz!” ele brincou, tentando animar o moral de Horácio. Dividiram a conta e Rubens saiu dali, indo em direção ao ponto de táxi próximo. Horácio permaneceu sentado, era dos poucos bares na cidade que não recolhiam suas mesas externas depois de meia-noite. Pediu ao garçom que passava ali por um cigarro e fogo. “Mas você não tinha parado, homem?” “Só esse, juro.” Acendeu e tragou como se outra vez fosse adolescente e estivesse descobrindo o gosto ruim que vicia tão fácil, uma tragada com anos de experiência porém. Estava levemente frio e Helena já estava dormindo, ela mandou um email para avisar que estava melhor mas não iria esperar acordada até ele voltar. Daquele ângulo, a cidade não parecia monstruosa. Daquela mesa, a vida parecia menos triste.
Sentiu uma súbita vontade de caminhar até três quarteirões adiante até a Doutor Arnaldo, mesmo no adiantado da madrugada e do perigo que é caminhar por São Paulo sozinho. Ali, perto de uma padaria, foi onde ele viu pela primeira sua Helena, numa passeata de funcionários do Clínicas. Helena era médica. Fez daquela padaria um ponto de lanches durante suas tardes na esperança de que a moça passasse por ali novamente, o que aconteceu quase um mês após. O relacionamento foi se construindo e ao cabo de um ano e meio estavam casados. Quando se sente para baixo, aquele local é uma espécie de ponto de fuga mental para ele. Caminhou sem pressa, saboreando a fumaça, olhando os muros pixados.
Vinte e cinco pessoas presas, ele se repetia mentalmente,
uma delas tinha sido acusada porque o namorado tinha quebrado uma vidraça de
banco e ela estava junto. Ele lembrava que o ministro da justiça havia sido seu
contemporâneo de exílio, porque na época deles ambos defendiam coquetéis molotovs
e roubos a bancos como forma de desestabilizar a ditadura. O agora ministro
havia inclusive planejado alguns desses assaltos, a despeito de ser uma
revelação que só o pessoal da militância sabia com mais detalhes. O
ex-guerrilheiro havia defendido a atuação da polícia e dos magistrados nas
prisões em entrevista para uma revista semanal. Logo ele, que se orgulhava de
uma foto sua de submetralhadora na mão.
Ele tinha dois filhos na idade de estar nas passeatas contra
a Copa e estarem fichados, presos. O Adriano, mais velho, morava em Londres e o
César, um ano mais moço, era músico – paixão de Horácio, a música – e estava
viajando em turnê, nenhum deles prestou apoio fora do universo de compartilhar
postagens em redes sociais. Horácio comandou a cobertura da sua equipe para
mostrar as manifestações, a ação policial. Abriu espaço para algumas figuras
que se destacavam entre os milhares para falar a seus microfones. Aquilo era
alguma coisa nova, o país gritando tão alto, tanta gente, uma repressão tão
violenta porque decerto o governo não imaginava que pudesse ser verdade. Quase
ninguém compreendia o que se passava e todos tinham uma explicação pra vender.
Estava quase no local quando se deu conta de que faltava alguma
coisa no cenário. A padaria, claro. Fazia seis meses que não passava por ali
prestando atenção para reparar que o imóvel onde funcionava a padaria não
existia mais. Diante da madrugada, contemplou os tapumes que cercavam o agora
canteiro de obras. Dizia uma placa que ali seria erguida uma nova agência
bancária dessas coloridas, como se fosse um parque de diversões. Uma dessas
agências bancárias cercadas de vidros, como se não houvesse nada lá dentro a
esconder, nada a temer. Cada porta de vidro daquela valia mais que a dignidade
e o lombo de quem apanhava da polícia, a mesma polícia militar que o havia
prendido há quase 50 anos.
Mais cedo ele havia dito ao vivo que gostaria de manifestar
sua solidariedade aos vinte e cinco indiciados nas manifestações por formação
de quadrilha armada e outras barbaridades jurídicas, em especial a três deles –
e recitou seus nomes – que havia conhecido pessoalmente na vida de jornalista. “Tudo
isso não passa de um grande absurdo”, ele disse ainda, olhos firmes na câmera
2, “num governo encampado por gente cuja origem mais básica na política foi
justamente a luta pela volta do regime democrático ao Brasil.”
Queria tacar fogo naqueles tapumes, mas não tinha fósforos. Sentiu-se
velho, enfim. Tomou uma decisão: na manhã seguinte pediria férias para viajar
com a esposa. O mais rápido possível, antes que Itaparica também fosse
demolida.
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