sábado, 29 de março de 2014

Mas eu gosto dela

Aquela mulher, aquela mulher.

Aquela mulher não era fácil. Nunca tinha sido. Era de um outro patamar, tinha pedigree, estirpe, grife. Mais do que isso, Cíntia, esse era o nome dela, Cíntia tinha uns bons dois palmos a mais de altura que eu. Quem olhava de longe jamais imaginaria que era comigo que ela estava, que aquele cara meio calvo e nada ameaçador era o par dela. Certamente é um amigo, todos deviam pensar.

Então quando chegávamos de mãos dadas, ou apenas juntos, era fácil perceber os olhares, a chacota, os outros caras todos. Ela fingia que não era conosco, mas devia se incomodar, ao menos. Porque uma coisa que havia ficado bem clara desde os primeiros instantes, um beijo mutualmente furtado ao final de um show de rock, um encontro duplamente planejado para parecer acidental num casamento, uma tarde no cinema que havia reinaugurado longe de shoppings, era que Cíntia não se via do mesmo modo que eu a enxergava em seus quase um metro e oitenta de altura de descendência italiana e olhos que traíam a alma.

Todo seu porte e imenso sorriso poderiam se transmutar em caldas densas e vulcânicas de ciúmes, insegurança e fúria em poucos instantes. Se a meus olhos aquela mulher era literalmente mais do que eu me sentia capaz, digno, possível, para Cíntia qualquer rabo de saia que rebolava mais ou sorria assado era motivo de reprovação, uma ameaça! Ela fazia questão de me dar longos beijos em público, inclusive, e se era pra que eu não me sentisse ameaçado pela minha estatura de menos, também eram beijos memoráveis e que humilhavam a concorrência (dava dó das meninas solteiras no casamento e todo aquele champanhe e vestidos pagos a prestações percebendo que nem aquele careca estava mais pra jogo).

No casamento foi que inclusive ela começou a se dar conta da quantidade de mulheres que gravitavam no meu círculo de amizades. Quando a terceira ou quarta veio falar comigo já na festa, os abraços ficando mais efusivos a cada música mais brega e aquela champanha toda descendo, eu podia ver que Cíntia já coçava a pulga atrás de sua orelha. Ela comentou o fato quando a festa já caminhava para aquele tradicional comichão onde todos os que ainda dançam se desligam das amarras da dignidade pessoal e deu pra ver que havia alto intangível diante de seus olhos, por que elas precisavam todas me abraçar, e aquela de roxo que só faltou me lamber, e estou de olho que na primeira você bem que tirou uma lasquinha da bunda da menina. Eu apenas achava um tanto de graça, porque, afinal, eu mal podia acreditar que uma mulher daquelas se desse a ciúmes de um cara feito eu, que, ora bolas, estava com ela, a apresentava a cada vivente conhecido em elogios e sorrisos de novo rico.

Aprendamos de uma vez: ter quadris dignos de sonetos ou gloriosos peitos não são argumentos racionais, mas apenas fatos muito subjetivos. No final das contas, são apenas os nossos olhos que traduzem esses signos em argumentos e aí a confusão já se fez, estamos perdidos e só nos resta torcer para que o pior não aconteça naturalmente. Eu jamais tive essa percepção e era complicado de tê-la diante de Cíntia sobre mim, os quadris e os gloriosos à flor da pele enquanto eu recebia generosas unhadas e portentosos chupões. Cíntia não via em mim aqueles reflexos todos de Woody Allen que eu encontrava em cada espelho que eu batia os olhos e logo fugia, temente da verdade. Via o homem que eu aspirava a ser e não sabia como.

E daí que a miopia conjunta não impediu que os encontros e cinemas e telefonemas evoluíssem para um namoro e planos de viagens a dois, natais em famílias, um apartamento dividido, cachorro adotado. Passou o tempo, passaram anos, passamos juntos. Eventualmente ela pode se flagrar vasculhando minha agenda no celular ou não resistir a revistar bolsos, beliscar meu braço quando meus olhos avistam outras moças. Eu também precisava lidar cotidianamente com os malditos selfies que o treinador-galã da academia de pilates subia em suas redes sociais quase sempre com a presença de Cíntia na foto, uma Cíntia sorridente, sorrisos obscenos e perturbadores, eu continuava reparando os olhares quando chegávamos de mãos dadas nos restaurantes, meu cabelo não vai parar de cair.

Ela é perigosa, mas eu gosto dela.

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