Ela não demorou a chegar. Passavam um pouquinho das seis da
tarde, mas o sol ainda nos castigava à beira-mar. Procuramos nosso lugar ali em
meio a toda gente, alguns já em retirada porque moravam longe e iriam encarar
ônibus, quiçá trens. O odor tão típico das praias do Rio ainda persistia: óleo
bronzeador, xixi, cerveja, marofa, o mar, suor, cecê, blondor e protetor solar.
Foi botarmos os pés na areia e Adele carinhosamente abraçou
meu braço direito, estalando de leve um beijo no meu ombro. Tinha um sorriso
silencioso, que era saudade, e também era carinho, mas era tanta coisa mais que
eu não iria perguntar, um pouco por covardia e outro tanto para deixar um certo
segredo. Deixei que o silêncio dela falasse por mim e caminhamos assim, sem
muito desassossego uns vinte, trinta metros. Fazia dez anos que não pisávamos
numa praia juntos.
(Dez anos passados, Adele saiu de Fontainebleau, nos
arredores de Paris, para me interpelar nas calçadas do Flamengo numa tarde
recheada de verão durante um fevereiro particularmente quente. Conservara os
mesmos olhos verdes-cinzentos que se acendiam em sorrisos. Foi um grande verão.
Ao final, ela me roubou um beijo, o coração e me fez comprar uma casa na
cidade.)
Num ponto que já não parecíamos tão longe da água resolvemos
nos estabelecer. Ela desfez o abraço e se pôs a arrumar a canga na areia e eu
fiz as vezes de armar a barraca. Ela então tirou o leve vestido branco, o que
despertou uma canção de Jorge Bem dentro da minha cachola e me fez deixar pra
lá coisas menos solenes como a fixação da barraca e o vendedor de cerveja que
se aproximou (uma é cinco e três é dez, chefia, vai?).
Lá estava ela exultante a meus olhos, diante do céu
insuportavelmente azul sobre um par de havaianas pretas trajando um conjunto de
biquíni decorado com corações azuis e verdes e invisíveis. Tinha a pele já
levemente tostada de quase uma semana no verão carioca. Para além, um garoto
chorava pela mãe, um homem havia muito acima do peso arrumava o calção ao sair
do mar, um casal supermalhado jogava frescobol à beira-mar, um vendedor de
biscoito Globo se juntou ao cara da cerveja (e ambos, acredito, também olhavam
para Adele a julgar pelo silêncio feito).
Ela se deu conta do meu estado e sorriu, genuinamente
contente, feito criança. Jogou em seguida o vestido amarrotado no meu rosto,
cheia de graça e então os dois vendedores voltaram a oferecer seus produtos,
falando ao mesmo tempo BISCOITO GLOBO UMA É CINCO CHEFIA É DEZ VAI BISCOITO.
(Peguei uma latinha, estava morna e meio choca. Uma merda.)
Quando me voltei já com a latinha em mãos e terminando o
primeiro gole, Adele ainda de pé me observava. “Saudades de você, sabia?” ela
disse sorrindo, malandra, carioquíssima da gema. Tomou a cerveja de minhas mãos
e tomou um gole que não devia imaginar a cerveja que viria dali, coitada. Foi
quando reparei então, nas suas costelas esquerdas, a tatuagem. Um desenho
fluido que vinha debaixo da omoplata e descia, em linhas e curvas e sopros até
começar aquela parte da cintura digna de beliscões e mordidas. “Gostou?”, ela
se exibia então, “Fiz escondida dos meus pais e o meu tatuador é um belga que
fez esse desenho inspirado em grafites de São Paulo”. Mesmo que todo seu ventre
estivesse besuntado de Bepantol e vedado em película adesiva eu não diria nada
diferente daquele sim, um sim visivelmente admirado, afinal não era apenas uma
mulher dez anos depois, era uma outra mulher, o mesmo espírito mas outra cepa,
uma evolução.
Ela me devolveu a cerveja e se deitou para aproveitar um
pouco do sol que tanto amava e sentia falta lá no Velho Mundo onde vivia. De
barriga para o chão, fez da canga seu lar e fechou os olhos enquanto eu
permaneci de pé, mas longe dali, num outro carnaval em que tive que viajar para
longe da cidade e ela calhou de voltar ao Rio, um típico desencontro dessa puta
vida. Eu naufragava em meio a um casamento medíocre então e bebia demais,
trepava com mulheres desnecessárias e aceitara um trabalho fora do Rio na
melhor época da cidade para não ser obrigado a estar diante de Adele naquele estado
putrefato. Na ocasião, ela reservou meia hora do feriado para me escrever um
email onde se dizia triste pela minha ausência e mais triste ainda pelo que
contavam de mim, que esperava que eu voltasse a ser aquele cara que havia sido
um dia, que ela acordava com vontade de ver. Junto, tinha uma foto (ela feliz,
mas sóbria, uma peruca Chanel rosa-choque, uma máscara de plumas violetas sobre
a franja, os olhos mais verdes do que cinzas, purpurinas pelo pescoço, espelhos
em volta porque estava num banheiro de lanchonete, algo assim).
Agora eu era outro também. Ficaria tudo bem, eu só precisava
me sentar e olhar o mar diante de nós. Antes, fui dar um mergulho para ela não
reparar que sozinho, eu chorava.
4 comentários:
De tudo o que eu posso comentar sobre este texto, o mais relevante é dizer que você nunca deixou de ser aquele cara que Adele acordava com vontade de ver.
Uma breve leitura num blog deixa isso bem claro.
Que bom que, após 10 anos, ambos mudaram conservando a essência de anos anteriores. Assim é a vida.
Crescemos, amadurecemos e, quando possível, não perdemos a ternura! ;)
Boa, defunto!
Me lembrou a trilogia do Richard Linklater
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