sexta-feira, 22 de março de 2013

Lábios (Romance em 4 atos)

1
No começo de tudo, chovia. Cântaros.

Foi quando ela apareceu, correndo e aflita. Eu tinha um guarda-chuva e ela um cigarro apagado entre os lábios. Próximo a nós, a uma boa dezena de passos distante, havia uma marquise mais tranquila que aquela chuva toda e então disse pra ela que poderíamos ir sob o guarda-chuva até lá. Ela sorriu, se acomodou junto de mim e seguimos a tal dezena de passos até aquele pequeno metro quadrado seco.

Havia voltado a chover de repente, comentei, achei que não fosse mais chover hoje. Ela concordou, o cigarro já aceso, apesar de molhado. Então sorriu novamente. Ali, na hora, nenhum de nós dois poderíamos saber, mas aquele sorriso mudaria absolutamente todo o resto das coisas. Nunca mais eu veria outro sorriso tão bonito, mesmo os dela. Sorrindo, perguntou se eu aceitava um cigarro.

Eu tinha parado com cigarro havia quase um ano, mas precisei voltar. Todo o resto das coisas começavam a mudar.


2
Entrei no quarto e o perfume me deixou um pouco tonto. Ela estava tensa com o jantar de aniversário de casamento dos meus pais. Seria seu primeiro compromisso oficial enquanto minha namorada. Levou três horas para escolher o vestido (lilás, sem decote, a saia pouco acima dos joelhos, meia-calça na mesma cor, sapatilhas vermelhas feito as unhas). Olhos cravados no espelho, o batom enchia seus lábios de vermelho, um vermelho impossível, obsceno, rubro.

Com o canto de um dos olhos, ela me viu ali, perdido entre seu perfume e seus lábios. Sorriu. Pronto, podemos ir, ela disse.

Em silêncio, continuei parado ali no quarto para observá-la. Ela fez pose e inclinou a cabeça, num gracejo.

Sua mãe vai achar esse vestido muito exagerado, não vai, perguntou quase já na porta de casa. Sim, eu disse, exageradamente lindo, igual a você.

Eu cortaria relações com qualquer pessoa que não enxergasse a beleza dela naquela noite. Felizmente, não foi necessário.


3
Havíamos bebido muito vinho, apesar da tarde de sol. Lá do lado de fora, o domingo de carnaval. Dividíamos uma dessas casinhas para aluguel com amigos numa dessas cidades litorâneas cujo nome termina em vogal aberta. O quarto estava impregnado do nosso suor, do cheiro de minha porra, da lascívia de sua vulva, nicotina, um pouco mofado nas quinas, a luz estridente abafada por persianas se esgueirava pelas frestas e se amarelava nas paredes.

Ela me olhou sacana e pediu um beijo. O seu melhor beijo, seu bêbado, foi o pedido integral. Beijar aqueles lábios era simplesmente o lógico, a única opção, o grande canal, a felicidade. Sua boca não era apenas carnuda, ela também trazia no seu desenho uma promessa que ia além da carne. Expostos ali com os cabelos em desalinho e os olhos embebidos, seus lábios entreabertos pareciam uma forma de nudez. Um pouco pelo pileque, outro tanto pela poesia, segredei à meia-luz da nossa intimidade - adoro quando sua boca parece uma buceta.

Foi o melhor beijo da minha vida.


4
Seus lábios estavam enfeitados com seu batom vermelho obsceno. Tudo o mais em volta estávamos velhos, desgastados, esmaecidos.

Como chegamos até aqui, meu amor? A pergunta veio dela natural. Seus olhos estavam menos castanhos, o brinco menos alegre, a voz sua como sempre. Havia acabado, então, percebi.

Claro que com o tempo fabriquei uma mentira para mim mesmo - uma estratégia para que eu pudesse continuar a vida, saindo de casa para trabalhar, não atrasar minhas contas, viajar nas férias, sorrir. Aquela mulher chegou a mim tão bonita, tão cheia de cor, de palavras, de perigos; o ano e meio comigo a desgastou porque eu era o oposto. Eu sou cinza, minhas palavras curtas, o sorriso cáustico, um medo só menos ridículo que a barriga de sedentário e conformista. O correto foi deixá-la partir e observar de longe e furtivamente ela renascer em esplendor e graça. Era daquele tipo peculiar de mulher que jamais deixaria de ser linda, padrões de estética e modismos não podiam com a sua verdade tridimensional.

Antes da mentira, contudo, havia a resposta que ela me pediu, como chegamos até ali? Você me ofereceu um cigarro e eu aceitei, respondi. Deveria ter negado, mas não consegui. Sobreveio um silêncio e nos despedimos.

Quis fumar, mas ela havia ido embora já, levando o maço. Nada mais seria como antes.

Um comentário:

Anônimo disse...

ADOREIII!!!
gostei especialmente da frase "Nunca mais eu veria outro sorriso tão bonito, mesmo os dela.". Gosto dessas frases que te fazem antever muito mais do que a história conta explicitamente.
bjs,
Re