sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Kelvin

A minha mãe adorava aquela fotografia em preto e branco emoldurada numa das paredes da nossa sala de estar. Era do casamento do Kelvin com a Cris, dois dos meus melhores amigos. Além dos noivos em trajes de gala, estavam na imagem eu e a Bia, a minha esposa, padrinhos do casal. A imagem retratava um grande sorriso conjunto, exalava amor, transbordava beleza e juventude e mentira.

Obviamente minha mãe ignorava essa parte da mentira e eu jamais quis estragar o retrato, então nunca contei pra ela que Kelvin e Cris andavam em crise ali pelo tempo da cerimônia mas haviam descoberto semanas antes que Cris estava grávida, e a gravidez podia ser um aviso superior de que eles estavam fazendo a coisa certa e não cancelaram o casamento. Bia havia se apaixonado por outro cara e ainda não tinha me dito, porque era uma coisa recente e ela não sabia onde aquilo ia parar. De todo modo, ela só se apaixonou por outro cara porque definitivamente não estávamos mais em sintonia, e nosso casamento já estava em vias se tornar mais uma fonte de aborrecimentos e vexames do que algo bom.

Cris perdeu o bebê logo depois da lua de mel, num acidente de carro. O casamento prosseguiu, afinal ela e Kelvin se amavam de verdade, por mais que só o amor não resolva a maior parte dos problemas de um casamento. O caso de Bia não deu em nada e ela me contou tudo após o fracasso, e ficamos abalados, ainda que juntos. O retrato já estava na parede. Alguns meses depois, pouco antes do primeiro ano de casados de Cris e Kelvin, Bia me contou que havia se inscrito numa bolsa para intercâmbio de quatro meses na Inglaterra e que fora selecionada. Ela disse que não contava muito com a ideia de que eu abandonasse minha vida aqui para acompanhá-la e que a gente podia passar esse tempo longe e decidir nosso futuro quando ela voltasse. Se voltasse, depois se corrigiu.

Aquele retrato ali na parede me incomodou quando Kelvin me ligou num sábado de tarde, a voz meio embargada, parecia embriagado. Em meio a palavrões, ele dizia que estava perdendo a Cris, havia algo diferente nela, algo ruim. Eu perguntei o que havia acontecido, ele não respondeu, disse que estava em casa, que só estava um pouco triste, me ligaria de novo mais tarde. Liguei para o celular da Cris em seguida, ela atendeu, estava a caminho da minha casa, queria me chamar pra jantar. "Prefiro falar com você pessoalmente", ela disse quando falei do Kelvin. A Bia já estava na Europa fazia um mês. Eu com saudades dela, porque apesar de tudo, ela ainda estava comigo.

No carro dela, fomos em silêncio, eu de banho tomado, ela de óculos de grau e cabelo preso num coque rápido. O restaurante estava vazio, o garçom era simpático, pedimos águas e massas. Eu perguntei se estava tudo bem. "Eu não sei, não sei mesmo", foi a resposta. "Eu queria que estivesse tudo bem, mas nunca está tudo bem, tem mais de um ano que não fica tudo bem e não sei se isso é normal, viver nessa merda". Cris tinha olhos castanhos claros e cabelos escuros do quais cuidava com afinco, mesmo sem maquiagem seu rosto era bonito. "É normal viver nesta merda, André?" Não soube responder. E, ao mesmo tempo, não queria ter que responder, porque Kelvin era meu amigo de infância, mais de 20 anos de vida em conluio. Como eu iria dizer pra mulher que ele amava que não, aquilo era péssimo, ela era linda e não era certo os dois continuarem consumindo um ao outro feito um câncer que se espalha sem avisar o doente.

Então eu menti. Disse que devia ser uma fase, que todo mundo sabe que os primeiros anos do casamento são complicados mesmo, a gente ainda está se adaptando a viver a dois, a não ser mais solteiro. A Bia e eu estávamos tentando nos acertar também e a nossa situação era bem mais casca, ela sabia, a Bia teve outro cara, a gente discutia feio, ela tinha ido pra longe pra ver se encontrava um espaço pra nós dois dentro dela. E depois de me sair com essa, apelei, e falei do Kelvin, que ele era louco por ela, que ele investiu muito dele naquela relação, que eu me preocupava com o meu amigo. Ela me olhou pra me fazer lembrar, mesmo que nenhuma palavra fosse dita a respeito na mesa, que o Kelvin desde sempre tinha pequenos casos com outras mulheres, com suas alunas do curso de inglês ou colegas da natação, em geral.

Fez-se um silêncio maior e comemos. Durante a refeição, Cris me olhou e falou calmamente que podia aturar tudo, menos ser mal comida. "Não me casei pra precisar querer outra piroca, André", ela reforçou. "E é isso, sabe, eu quero, eu preciso". Ela voltou a olhar pro prato e voltar a comer, enquanto eu só conseguia pensar naquele instante em caralhos. Longos e duros caralhos, todos à mercê de Cris, mulher do meu melhor amigo, de cujo casamento eu era padrinho.

A gente jantou e pediu a conta. Ela disse que ia lá pra casa, de lá ligava pro Kelvin e avisava que ia passar a noite no meu apartamento. Queria conversar comigo como a gente fazia na faculdade, antes do Kelvin. Ela não precisou falar mais nada - antes do Kelvin, Cris não apenas passava noites de papo, mas era uma das minhas amantes eventuais. A gente tinha aquela sintonia boa que às vezes falta nos casais, ou então éramos jovens o suficiente pra gostar mais do sexo doque dos problemas. Passamos num supermercado e compramos um vinho e cigarros.

O assunto saiu do presente e se voltou pros anos passados antes da segunda taça. Não chegou a haver uma terceira taça. Numa virada decisiva daquela noite, Cris perguntou com um sorriso (já sem os óculos e o cabelo solto) se eu me lembrava de uma viagem pra Natal. Claro que eu me lembrava, nenhuma outra mulher jamais havia me comido em Natal, somente ela. Ela sabia disso. Fodemos ali mesmo no tapete da sala, onde ela fez questão se pôr de joelhos e com as mãos abrindo o caminho, pedir pra que eu lhe comesse o cu. Nenhuma outra mulher me fazia aquela graça, mas isso eu não ia entregar de lambuja.

Ela levantou cedo e saiu sem me acordar na manhã seguinte. Era domingo e eu levantei tarde. Bia tinha mandado um recado pelo celular que talvez voltasse antes dos quatro meses porque estava com vontade de me ver. Kelvin enviou um recado pelo tuíter que a Cris tinha voltado pra casa e não queria brigar com ele, agradeceu pela força. Eu estava de ressaca, puto da vida e tinha aquele quadro na parede da sala.

Quis tirar ele dali, mas então tocou o telefone. Era minha mãe. Queria saber se podia aparecer pra me fazer uma visita de noite. Eu disse que tudo bem.

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