terça-feira, 1 de novembro de 2011

Safadeza

O moço entrou e pediu por uma água. Estava quente na rua.

Ele subia a rua com seu bigodinho aparado e o terno meio tosco de proletário de escritório, depois de descer no ponto final do coletivo, uma esquina mais pra baixo. Caminhava devagar, como se a vida lhe bastasse daquela maneira. Eu cuidava de atender a clientela no bar da mãe, que conferia o caixa antes de dar o dia por encerrado. Não tinha sido um dia tão bom assim, o movimento estava fraquinho e o freezer das cervejas voltou a dar problema.

Bem que minha mãe avisou pra ficar longe daquele moço porque ele só queria saber de safadeza. E ela me avisou desde o primeiro dia que me viu de chamego e toda sonsa com os salamaleques dele. "Esse tipinho não me convence, não, minha filha, ele tá é na má-intenção", vaticinou Dona Sônia.

Fiz pouca mouca. O moço tinha uma voz tão gostosa de ouvir, ainda mais no finalzinho da tarde, que era quando ele costumava aparecer na rua, todo simpático - sorria pros moleques jogando bola, cumprimentava as pessoas que voltavam do trabalho e alguns que naquela hora é que partiam para o ganha-pão. E ele nunca havia, nem de longe, se dado a desrespeitos. Ele gostava de uma boa conversa, sempre tinha uma coisa nova pra contar, ele trabalhava levando documentos pra assinar, entrando em filas, essas coisas.

Acheguei-me na mesa onde ele se postou e afrouxou a gravata meio surrada, com a água, o copo com gelo e o cardápio - uma folhinha plastificada com os quitutes locais no verso e as bebidas na frente. Abri meu sorriso, um botão da blusa e espiei com o canto dos olhos se a mãe tinha percebido. Ela sempre percebia, dava pra ver o meneio com a cabeça enquanto fazia as contas e separava as notas e as moedas. Perguntei se ele queria mais alguma coisa.

Eu bem queria é que ele respondesse que sim, queria que eu me sentasse em seu colo, só pra começar. Mas o moço nunca havia, repito, nem de longe, friso, se dado a desrespeitos, apesar da mãe ter certeza do contrário e dos decotes que eu improvisava, das saias curtas que eu usava desde que ele resolveu fazer do bar uma parada quase diária da volta pra casa. Ele disse que aceitava um pastel de carne e um guaraná.

Enquanto eu estava na cozinha providenciando o pastel com todo o meu capricho, a mãe veio ter comigo. "Sabe se esse safardana vai demorar muito? Já fechei o caixa hoje." Eu disse que ele pediu o pastel e um guaraná, além da água que estava bebendo. Ela repetiu que não queria demorar a fechar o dia e resmungou qualquer coisa mais pra si do que pra mim. E disse que ia dar uma olhada no periquito, seu periquito de estimação, que ficava nos fundos da casa, nossa casinha de alvenaria logo do lado do bar. "E não me demore, hein, que eu estou de olho em vocês e feche direito esses botões na blusa, menina." Eu respondi que estava tudo certo, esperei ela sair e abri outro botão.

O pastel ficou pronto e fui servi-lo com o guaraná, o moço lia a página de esportes, mesmo que meio amassada. Ele agradeceu e disse que não se demorava. Eu disse que não havia pressa e ele perguntou se eu não queria me sentar à sua mesa e lhe fazer companhia. Reparei que ele tinha os olhos timidamente presos (constrangidos?) ao decote proposital que abri na blusa. Não apenas me sentei, como o fiz sorrindo e perguntei se o pastel estava a seu agrado. Ele assentiu com a cabeça a caminho de mais uma mordida.

Não falou muito, e o pouco que disse, foi só para quebrar o silêncio. Após o último gole do guaraná, sorriu satisfeito e perguntou quanto custava tudo. Um pastel de carne, a água e o guaraná são sete reais, moço. Ele pagou uma nota de dez e me acompanhou até o caixa pra eu pegar o troco. Abri a gaveta da registradora, vazia. A mãe já tinha recolhido a féria do dia. "Olha, moço, a mãe já fechou o caixa mas podemos ir ali na cozinha, tenho certeza que deixei uns trocados ali e você pega o troco". Meus olhos devem ter brilhado porque não contive um sorriso quando ele aceitou me acompanhar pra ajudar a encontrar o dinheiro.

Fechei a porta da cozinha discretamente. Mesmo com a porta fechada, dava pra ouvir a mãe cantando com o periquito. 
Mal sabia ela que safardana por safardana naquele bar, eu apostaria mais em mim.

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