quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Da janela do táxi

Cheguei ao ponto de táxi tão cansado de mim mesmo que quando o motorista perguntou para onde iríamos dali, tive ganas de responder que era para irmos embora de tudo. Vamos sair daqui enquanto é tempo, amigo, sair da cidade, sair do país, sair de hoje se possível e até sair de mim mesmo. No entanto, respondi que era para ficarmos na João Pessoa, logo depois da Lopo.

As horas que eu vi passar enquanto esvaziava copos e argumentos entre amigos rumo ao nada, elas se arrastavam dentro de mim apesar de se acabarem tão depressa. No final, eram horas tão vazias quanto aqueles copos sujos, as lentes sujas dos meus óculos, as artérias sujas do meu coração. A minha cama não era tudo o que eu precisava então, mas me servia bastante bem.

Abri a janela do carro que se pôs em movimento madrugada adentro, uma noite tão úmida que fazia, eu de casaco apesar do mês de outubro. Após poucas dezenas de metros percorridos, vejo Vitória caminhando pela rua tão vazia. Passos serenos dentro de uma botina dessas militares, solado grosso, cadarços perfeitamente em desalinho. Tinha os olhos na calçada e a seu lado o antimim, que empurrava uma bicicleta.

Quis pedir ao motorista que encostasse ali, espere aqui parado uns dois minutos, só, amigo, só pra eu olhar essa menina andando noite adentro rumo a lugares que definitivamente não foram feitos para mim. Só queria me resignar dentro daquela noite em prantos, me apossar do vazio daquela rua e observar mudo os passos que Vitória caminharia na calçada, os cigarros sobreviventes no bolso do casaco, os beijos do dia seguinte guardados na boca que desenhava um sorriso tímido. Se o motorista me filasse um cigarro, talvez eu pudesse expelir com a fumaça a vontade de descobrir as partes que Vitória não deixava a meu alcance, ou que eu era inábil para perceber quando elas se mostravam, porque eu estava olhando para o lado errado, com os olhos errados. Ali pela segunda ou terceira tragada eu veria o antimim me mostrar como não havia mistério algum, nenhum truque, nenhuma abracadabra, só havia mesmo uma mulher que gostava de sorrir e de homens que não se ocupassem por demais em tropeçar sobre si próprios.

E aí então eu me sentiria tão barato.

Talvez eu só precisasse mesmo não pensar em nada, nos mistérios, nos silêncios, nas pupilas furtivamente castanhas, em sua vergonha de fazer xixi na rua de frente a um homem estranho que não tinha pudores em urinar a uma esticada de olhos de distância. Não há truques, apenas uma garota tentando sorrir e descolar um pouquinho de diversão nessa cidade. Uma garota que caminhava no sentido contrário e daí coloquei a cara para fora do vidro aberto e acompanhei até onde deu, meros segundos, aquele desencontro. Ao lado dele, ela parecia tão tranquila, tão bonita, como se não fosse obra de um acaso mas a ordem natural das coisas, essa mentira na qual todos cremos nas piores horas.
 
A partir dali, a cena não mais me pertencia porque era intimidade aquela caminhada, uma delicada forma de calor, era tão simples feito dois e dois. Palavras que ela só ouviria das frases daquele moço, assim como a gente, cada um de nós, logo acha um beijo muito próprio quando é uma pessoa que a gente gosta demais de que nos beije e daí surge um olhar particular e particulares particulares demais para que eu generalize. E aí pode ser o modo como um joelho se dobra, uma tatuagem na omoplata, uma joanete no pé esquerdo, a força com que a mão da outra pessoa vai se agarrar aos seus cabelos.

Eu gosto de pensar em Vitória de pé, sem as botas, sem as meias e com um último cigarro aceso em mãos. Ela caminha do pé da cama até o cinzeiro numa mesinha a quatro passos dali e desabotoa a calça. Olha para o espaço da cama onde logo irá se deitar, sem o jeans desabotoado. O antimim obviamente não figura no pensamento.

Doce ilusão. A corrida do táxi não deu nem sete reais. 

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