sábado, 25 de maio de 2013

Do amor

Conheci Tarcisa no verão de 2004. Ela era ruiva, o que primeiro se destacou na sua figura. Além de ruiva, ela sorriu e disse que tinha gostado da minha camiseta. Era uma camiseta branca, mas tinha uma frase de efeito irônico nela em fontes sem serifas, moderninha. Isso foi nosso primeiro contato, era aniversário de alguém e no final da festa ela disse que não iria me beijar porque eu estava muito bêbado (o que era uma grande verdade) e ela queria ver se eu lembraria dela tão bonita como eu (ah, o álcool) estava repetindo naquela noite, enquanto me pendurava num semi-abraço de urso.

A segunda vez que encontrei Tarcisa ela estava com o cabelo preso e de óculos. Fomos ver o mesmo show de uma banda que era relativamente popular entre ex-estudantes universitários velhos demais para as salas de aula e jovens demais para cabelos brancos. Eu estava sóbrio, porque estava dirigindo com a carteira vencida e não quis arriscar dialogar com os oficiais da lei. Só a possibilidade de ser pego com a carteira vencida já iria me garantir uma madrugada com fortes emoções. Não lembro porque também não rolou nada de novo, nem um beijinho. Pode ter sido uma loira que me agarrou lá pela terceira música e me alugou até a quinta. Expliquei que era uma ex-namorada de um primo que vivia na neura de pó e bolinhas, mas ela não se convenceu plenamente. Nem aceitou a carona que ofereci.

A terceira oportunidade onde eu e Tarcisa nos encontramos eu quebrei um dedo da mão esquerda, aquele que fica entre o pai-de-todos e o mindinho, o anelar. Não me lembro como se deu o fato, e nem ela. Rumores citam uma escadaria, outras fontes garantem que Tarcisa reagiu bruscamente a uma tentativa minha de invadir o banheiro onde ela havia entrado para seduzí-la como, hã, o James Bond ou o Ashton Kutcher devem fazer em seus melhores dias. Já inquiri Tarcisa a respeito e ela negou veementemente - vejam só, palavras dela, "naquela dia eu estava doida pra dar pra você, amor".

Em meio a inumeráveis garrafas de cerveja e alguma carne - era um churrasco, mas a galera estava mais concentrada em beber e quase ninguém ali sabia pilotar uma churrasqueira - Tarcisa e eu nos atracamos num sofá, isso eu me lembro. Também lembro que era a mesma camiseta do primeiro contato mútuo. E que ela havia cortado o cabelo, parecia mais jovem, mais alegre assim. Certamente mais bonita e por razões que não existem fora do momento em que isso aconteceu, é a imagem dela que ficou mais bem gravada, ela sorrindo sob seu novo corte de cabelo daquele dia em que me recordo de quase nada.

Em coisa de duas semanas trocamos telefones, trocamos mensagens, trocamos mais beijos, ficamos com outras pessoas e não foi tão legal como antes, saímos novamente e foi excelente, de tal modo que acabamos num quarto de motel. Sóbrios.

Então reparei que ela tinha uma barriguinha mesmo, dessas que dobram quando se senta, que a gente pode morder se houver a chance e a intimidade. Dei uma bela abocanhada e sorri. Talvez tenha sido nesta mordida sem-vergonha que o quer que houvesse entre Tarcisa e eu tenha se transformado no que a gente chamou de amor. Ou é apenas a minha versão do amor, de como me apaixonei por aquela mulher. O que se passou naquele quarto dotado de luz negra e muitos espelhos foi apenas consequência daquele meu instante de iluminação.

Este foi nosso prólogo. O que seguirá abaixo é o epílogo.

Eu e Tarcisa estávamos de viagem para comemorar a virada de 2010 para 2011 num desses resorts à beira-mar onde o céu é bisonhamente azul e as águas parecem ser fruto de photoshop. Eu andava calado naqueles dias e Tarcisa inquieta. Seu cabelo havia voltado a ser longo, mas isso não a tornava menos atraente. Eu gostava de seus cabelos compridos, como gostava de seus lábios sem batom ou de abraçar suas costas nuas.


O silêncio era fruto de uma discussão de um par de dias passados, não superada ainda - talvez nunca tenha sido. Durante a viagem, havia uma aeromoça. A aeromoça, vos digo, era linda - linda, linda, linda - como somente as mulheres que vemos em comerciais e capas de revistas poderiam ser. A cintura era fina, os lábios vermelhos, os cabelos presos num coque, o sorriso obsceno. Tarcisa reparou que eu não conseguia tirar os olhos da criatura e, ainda que tenha calado e engolido parte considerável de seu orgulho na hora, como boa componente de um casal, guardou o rancor. Chegamos ao nosso quarto reservado (caríssimo, parcelado em dez vezes no cartão) e ela tirou toda a roupa, suplantou a mágoa, o rancor, a vingança, sorriu, veio a mim, veio rebolando. Foi quando falhei, e falhei de tal maneira que abro outro parágrafo.

Num átimo não-perceptível e inconsciente, aquela aeromoça impossível estragou tudo. Daquele átimo veio a percepção do corpo, o corpo físico e humanamente imperfeito de Tarcisa, a mulher que eu amava e havia viajado cinco horas comigo, engolindo no trajeto café de plástico e parte de seu orgulho por sincero amor. Após a jornada, ela se despia em alegria explícita, me prometendo sexo - o melhor que eu conhecia na vida, de longe, chorem inimigas - e eu, o filho da puta, eu lembrava da cintura fina, lábios vermelhos e etc. da aeromoça e de súbito percebia que Tarcisa, sete anos após aquela primeira noite de nudez e mordida, me incomodava. Não a alegria e o tesão, mas a nudez.

A nudez de Tarcisa trazia consigo barriguinha, celulites, estrias, verdades. Naquele instante, foi a primeira vez que esses detalhes sobressaíram diante do todo e não consegui enxergar a mulher me desejando, mas apenas que seu corpo não era aquele que a comissária de bordo exalava - e, decerto, também deveria ter seus particulares, o que eu jamais irei saber. Tarcisa foi implacável então - percebeu o olhar, por mais que eu tentasse não demonstrar o breve choque de realidade. "O que foi? Eu tenho barriga, eu tenho banha, olha na bunda, tem estria!" Eu não sabia o que fazer, porque não estava certo de que era rancou ou mera ironia, e ela então soltou os cachorros, jogou no meio das minhas fuças a mágoa com meu comportamento no voo, e abriu uma vodka dessas de miniatura, e eu tentei argumentar, mas não era minha a razão e brigamos.

Foram três dias no tal resort, três longos dias. Algo se partiu naquela primeira noite e não foi possível consertar. Do mesmo modo que meus olhos não conseguiam deixar de reparar que o corpo de Tarcisa - tal qual o meu próprio corpo - era demasiadamente humano, o que antes era uma presença de espírito se tornou num constante rancor, a ironia sadia começou a soar irritação crônica, os diálogos sucintos agora eram um silêncio constrangedor e longo. 

Ao voltarmos para a realidade - rotinas, chefes, contas, supermercados - tudo piorou. A lembrança dos primeiros dias permaneceu, mas não parecia que a protagonista daquelas aventuras era aquela mulher que vivia comigo, com quem era difícil sorrir, com quem a conversa era ríspida, com quem o afago era quase mentira. Comecei a querer ir embora dali, de onde estávamos. 

Houve tentativas, recaídas e afinal, nos amávamos, ainda que não houvesse amor. Mas o que costumava ser tão excitante era somente triste, uma figura morta, uma versão ruim, mal acabada, pobre. Comecei a evitar espelhos para fugir de mim, da minha figura flácida, da barriga sobre o pinto infeliz.

Era então o verão de 2011, dezembro quase janeiro, Tarcisa não era mais ruiva, eu não era mais moderno, a gente já não se reparava mais. Ela disse que ia viajar para a praia com amigos e nunca mais fez questão de voltar. Lá pelo carnaval a ficha caiu, mas já era 2012, eu já estava de caso com outra mulher, que não queria amor, não queria promessa, só queria foder comigo, foder bastante.

Outro dia desses nos encontramos, conversamos e não tive coragem de me desculpar. Mas passou.

Nenhum comentário: