quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Raspas de limão

O coletivo seguia no trajeto carregado de passageiros, era um final de tarde, a gente cansada voltando do trabalho. Foi quando deu-se a confusão.

De início, apenas o bafafá. O ônibus contornava uma daquelas longas curvas onde precisamos nos segurar como possível e o burburinho de vozes ia tomando corpo, ocupando o espaço que sobrava e logo desconhecidos comentavam entre si, ainda que não compartilhassem de qualquer tipo de intimidade prévia: uma indecência, onde já se viu, isso é culpa do tal de tuíter, ah, só podia ser no governo do pê-tê, absurdo total, canalha!


Foi uma senhorinha que estava sentada ao meu lado e tão longe da origem do rebu feito eu que vociferou o "canalha" com a exclamação, em tom de voz bastante audível. O protesto dela também marcou o final da curva e de súbito o automóvel foi reduzindo a velocidade, fato que por sua conta reforçou a central de comentários no ambiente. Agora se falavam em chamar a polícia, surrar o canalha, chamar a polícia para surrar o canalha, teve um menos atento que chamou os polícias de canalhas, mas este realmente estava noutra sintonia.

O autobus realmente ligou o pisca-alerta e encostou próximo a uma parada de ônibus, como se deve no caso de apresentar algum defeito mecânico ou, como de fato se passava, sob motivo de força maior. O trocador saiu de seu posto e foi confidenciar alguma coisa ao motorista, que olhava na direção dos passageiros para tentar identificar o culpado do tumulto.

As pessoas foram se afastando do epicentro de tudo onde jaziam de pé uma moça com visíveis e embaraçosas lágrimas na face ainda juvenil, trajando uniforme de trabalho de escritório e ainda próximo a ela um rapaz, igualmente em seus vinte anos, segurado por outros dois homens mais velhos, visivelmente apalermado de susto e constrangido.

O motorista levantou-se de foi caminhando, heroico, saltou a roleta e pisou firme em direção ao moço, um moço meio franzino, os olhos claros e cabelos raspados, pele parda. Os dois homens que o seguravam tinham nos olhos a vingança, não sei se por conta da realidade de andar de ônibus, trabalhar demais, ganhar de menos ou porque aquele rapaz havia, vá saber, bolinado a moça ou insinuado indecências em público ali no aperto coletivo.


O condutor no entanto revelou-se excelente diplomata. Se havia a expectativa de que o tarado fosse levar um tiro na cara ou um soco na boca, o motorista tratou logo de pedir que a dupla não fizesse nada além de vigiar o rapaz e o mantivesse ali até que ele esclarecesse a situação. Então, ele se virou para a vítima e perguntou se estava tudo bem, o que havia se passado.


A menina baixou o rosto e envergonhada, voz baixa, confessou. Era ex-namorada do rapaz em questão, havia terminado com ele havia um par de meses e que não queria que fizessem mal a ele. Um grande número de pessoas se espantou, natural, outras riram maldosamente. Mas como se deu a confusão, quis saber o condutor. Ela, então, num fio de voz que desejava emudecer, confessou que esbarrou no moço sem querer e logo se reconheceram, trocaram palavras e o moço então lhe falou, mas não ao pé do ouvido, lhe falou bem claramente e as pessoas próximas puderam ouvir, que gostaria de dar nela um beijo bem dado no vão dos seios ou na penumbra do cu.


A expressão de três ou quatro passageiros confirmou a história. O motorista perguntou se ela  gostaria que chamassem um policial ali, temos um posto de polícia próximo, que isso não era coisa de falar a uma moça, um desreipeito. A moça negou, reafirmou a vontade de não querer mal a ele mesmo assim, mesmo com a obscenidade pública.


O motorista suspirou e se voltou para o rapaz.  O melhor, para evitar maiores consequências é que você desça aqui mesmo do coletivo. Precisamos continuar a viagem e o senhor já fez tumulto o bastante. O rapaz concordou, os dois homens o soltaram meio a contragosto e ele foi descendo as escadas, devagar, vencido. Então, quando ele alcançava o último degrau, a menina saiu atrás dele, firme, apressada. 


Ele percebeu e parou, se virando, não sabia se seria agredido, se era a hora de sair correndo da turba. A menina lhe puxou pelo braço e ao alcance de todos que quisessem saber, lhe disse que o beijo estava aceito e disse mais, vejam só, disse que ia temperar a bunda com raspas de limão naquela noite, só pra receber o beijo.


Os dois desceram e o coletivo seguiu em frente, cheio de gente cansada voltando do trabalho, mas alegres, agora, definitivamente sorridentes.

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