segunda-feira, 8 de agosto de 2011

O troco

O troco, a paga, a refeição que se coze em nitrogênio líquido para ser servida em bandeja de prata. Ele compra cigarros até o dia 10 e comida até o dia 28. Ele está subindo as escadas num resfolegar obeso, embaraçoso. Maria sorri.

Hoje já é o vigésimo nono dia do mês e seu dinheiro virou tema de ficção há quatro dias atrás, numa mesa de sinuca. Ele sabe bem disso e o fato o importuna. 

Cada degrau do lance de escadas que o transporta da sala para o segundo andar da casa enorme que alugou range a seus pés e ele chega a pensar que os degraus quase não suportam mais o fardo que ele leva sobre os ombros: o emprego que lhe paga mal, a amante que ele fode mal, os dois filhos que se comportam mal, a esposa com quem mal conversa.

Maria, no entanto, sorri. Maria sabe que o dinheiro acabou – a sinuca, a cana, a amante, as putas, os cavalos – e sabe que ele está de péssimo humor. Maria sorri porque sabe que a cada degrau calçado por aqueles pés, ele alcança o destino que merece. Maria sabe de algo que ele não desconfia, e Maria sabe amar.

Ele não sabe amar, isso é certo. Ele lhe esbofeteou a cara na mesa da janta na frente das crianças há dois anos atrás. Cinco anos de casamento. Contas atrasadas, palpites mal assinalados, o bife mal-passado. Não teve um aviso, um olhar furioso, algo que a preparasse para o pior. Houve o baque seco e então a ardência, as crianças mudas. Ele retornou ao prato de comida – pegou a faca e cortou o bife, que molhou o arroz e o ovo frito do jeito que ele pedia.

Maria engoliu em seco. Até conhecer o outro, um ano e meio depois daquele (primeiro) tapa. O outro não ganhava muito melhor nem trabalhava muito menos. O outro não era muito mais bonito. O outro tinha até uma acentuada calvície e dentes amarelos de cigarro e café. Mas o outro gostava dela, de modo que Maria passou a ser beijada no rosto, nas mãos, nas pernas, na boca, no vão dos seios (arrepio).

O outro ainda por cima sorria. Sorria das coisas que ela contava, sorria quando ela mostrava os retratinhos das crianças que ela portava na carteira, sorria quando ela teve medo na primeira vez e quis fugir antes que não desse mais tempo.

Ele não tem como saber de nada disso, só sabe que as escadas rangem a cada passo. Ele está meio zonzo com os três copos da branquinha que virou duas esquinas passadas (mandou pendurar na conta) e só agora se deu conta de que esqueceu de passar na venda e trazer alguma carne moída pra janta. Mas a mulher anda esquisita, outro dia estava até num assovio quando tirava a roupa da corda, quiçá não lhe encha o saco e deixe por isso mesmo.

O que ele deu conta de saber é que a escada começou, ali pelo meio da subida, a ranger mais que o habitual. A casa era velha, as crianças morriam de medo da escada, que fazia barulho e só agüentava uma pessoa por vez. Ele não acreditava nessas coisas que rangem e o próximo passo foi propositalmente mais pesado, para mostrar ao mundo quem dava as ordens na casa. Foi quando a escada cedeu.

Maria sorriu sentada na cama de casal e aguardou as crianças aparecerem na porta, com a notícia na ponta da língua. 

Porque a janta daquele dia seria servida como se deve: fria, na louça de prata que ganhou da sogra, presente do casamento.

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