sexta-feira, 3 de junho de 2011

Felicidade

Antes dela ter me largado, eu gostava do inverno. O inverno deixa Porto Alegre com a feição que a torna mais agradável a meus olhos e meus pés. Há um quê de silencioso nas noites da cidade entre maio e setembro, como se o vento fino tratasse de emudecer as calçadas e passarelas.

Os invernos ao lado dela tinham gosto de café quentinho, amanheceres manhosos e lavanda. Não fosse por ela e suas loções de pele, eu jamais saberia diferenciar lavanda de leite-de-coco. Mas ela pedia com dengo de namorada para que eu lhe espalhasse a loção pelas costas, massageasse os pés e assim se fez minha catequese.

Noite passada me vi solitário no meio de uma sala de estar feita para duas pessoas ou mais, aquele silêncio e o branco da luz me corroendo. Lá da rua chegavam o ruídos dos automóveis e dos jovens que se dirigiam a uma casa noturna que funciona a poucas quadras do meu apartamento. Ignorei a obrigação de acordar cedo para o trabalho na manhã seguinte e fui atrás deles, dos ruídos, dos jovens, dos automóveis, das luzes estroboscópicas.

Em menos de dois minutos lá dentro percebi que eu era um retrato em preto-e-branco, desses de gente que morreu, pendurado numa parede esquecida de repartição no meio de um desses videoclipes (vejam como sou antigo) de gangstas, com muita bebida, muitos casacos coloridos e sorrisos e beijos de língua. Duas meninas que tinham jeito de quem os pais devem tratar dentro de casa como ambas ainda fossem para a escola com fita no cabelo e lanche na merendeira dançavam no meio na multidão como se não houvesse uma legião de adolescentes sem lhes tirar os olhos, uma delas tinha sobre o lombo uma tatuagem tribal completamente hipnótica. Pedi rapidamente no bar outra latinha de cerveja morna para sobreviver a outros daqueles minutos.

Eu lembro de ter sido tão jovem quanto eles todos algum dia, mas deve ter sido há muito tempo porque a minha única reação - além de gravar os detalhes da tatuagem da mocinha - era observar e sorver a latinha, de fato morna. O bom de ser jovem é ignorar esses velhos a sua volta, a não ser que haja qualquer coisa de ridículo ou interessante em suas figuras.

O que havia em mim, portanto, para que a moça da tatuagem se despreendesse da pista de dança e viesse na minha direção? Eu, cabelos brancos, cansado, maldormido, semibêbado. Não consegui me focar em nada do que a menina me disse, e seria complicado com aquela música tão alta e as pessoas se comunicando aos gritos. Mas reparei no desenho que sua boca fazia a cada sílaba, ou talvez já fosse a cerveja, eu realmente não deveria beber de barriga vazia.

A menina se apegou de uma das minhas mãos e me arrastou, corredores, espelhos e finalmente a rua, o vento frio, o inverno. Ela então me perguntou, sorrindo, se eu não iria realmente lhe dizer meu nome. "Sou apenas um homem velho, querida, fuja de mim". "Você é engraçado, mesmo".E então me beijou de tal modo que fomos parar no meio daquela sala onde eu morava, a poucas centenas de metros da calçada, a luz agora apagada.

"Me come de quatro, amor. Goza na minha cara."

Antes dela ter me largado, aquela sala não era tão grande. A moça tatuada tomou um banho e se foi, já passavam das 3 da manhã e eu nem tinha jantado. Fiquei pensando que ela depois de me largar iria dar pra outro cara, numa outra sala de estar, dormir noutra cama, passear noutras calçadas. Esse outro cara lhe espalharia lavanda nas costas, quiçá no cu, numa ocasião especial. Esse outro cara iria ser feliz.

Eu iria trabalhar com sono e dormi ali no sofá mesmo.

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