sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Despedida

Eu lembro de chegar em casa do futebol, o joelho meio estropiado e chamar por você. Você sempre aparecia pra me receber com um beijo, o que eu adorava. A inocência e a promessa do beijo, nenhum beijo jamais teve essas inocência e promessa. Mas dessa vez a casa estava toda apagada, era noite e tudo breu. Dentro daquele silêncio negro feito as brumas de um grande mar meus olhos captaram uma nesga de luz elétrica que vazava tímida pela cozinha e pra lá me fui. A luz vinha, de fato, da área onde se ouvia a água do tanque que caía vazante torneira abaixo e de súbuto, era você no tanque. A rainha do tanque. O cabelo num coque ligeiro, a blusinha cinza e as mãos arqueando o rego, a calcinha ali, entre os joelhos e os pés em gloriosas havaianas. Ao sentir minha presença, você postou-se na ponta dos pés e sorriu, eu pude perceber.

Você gostava de me surpreender durante o sono, lembra? A gente estava numa viagem de férias pela Bahia e alugamos um barquinho pra passar a noite vendo a orla iluminada, você adorava os pontinhos acesos sobre o oceano, um oceano tranqüilo. Eu tostado de sol, você dançava como se fosse lógico e a gente adormeceu ali, na boleia, se é que barco tem boleia. Eu lembro que sonhei você sereia e sua cauda escamosa carinhava as pontas de meus dedos, você dizia pra eu ninar que ia olhar as estrelas e cuidar pra nenhuma me desgraçasse. Era esse o sonho quando senti sua mão firme e viva em meu peito, seu bafo descendo meu umbigo, meu torso nu. Sua língua veio salivando e seus peitos roçavam nas minhas pernas. Seus olhos se fecharam e abri os meus.

Lembro muito mal de uma festa e tocava só dance music dos Bálcãs e só se bebia tequila e em cada canto, charros e mais charros, todos nós perros. A gente não descobriu quem pagou a conta ao final, nem como. A gente passou três semanas tentando descobrir como voltamos pra casa. Tinha uns lances de escadas, lembro bem porque tropecei horrores, e um monte de gente se postava ali, e você subia na frente, você e a alcinha do sutiã vermelho explícita, você dançando aos saltos e as tequilas em suas mãos, as tequilas logo viravam beijos e os beijos viravam gritos e os gritos subiam a escada, tropeçavam nos degraus, forçavam a porta do banheiro e eu entrei mesmo, e nos trancamos lá dentro e você cheirava a tudo, cheirava a vida, cheirava a amor.

Você descobriu tudo e armou a cilada, preparou a janta, acendeu as velas, perfumou a nuca e depilou as axilas, a pélvis. Você quase nunca depilava a pélvis, mas dessa vez depilou, a xoxota nua feito porcelana rara. Você abriu o vinho e me mandou pro banho, você assou pernil e calçou saltos, você colocou até Vinicius & Toquinho pra embalar. Você sorriu e me levou pro quarto. Você disse que ia me foder como nenhuma outra poderia e se revelou nua por baixo do vestido. Aquela noite, você se pôs de bunda pra cima e me ofereceu o rabo, você segurou a dor e jurou que me amava. Pior, eu acreditei que você de nada poderia saber e meti fundo, tudo o que podia entrar, tudo o que eu desejava.

Você saiu e eu nunca soube por onde. Você não disse onde ia, com quem iria ficar, se algum dia ia me deixar saber. Você não derramou uma lágrima e se o fez, eu nunca vi – e procurei dois dias por pistas pela casa, rastejando pelo chão, nu, o pinto mole e pendente entre as pernas. Você não deixou uma peça de roupa, um vidro de acetona, um fio de cabelo. As chaves ficaram todas no chão, atrás da porta. As fotos desapareceram e os postais, os brincos, os presentes, as algemas tomaram rumo incerto e não sabido. Sua mãe desconheceu minha voz quando liguei todas as cento e trinta e sete vezes.

Você se foi. Deixou na porta uma imagem, era uma manchinha cinza numa redoma negra, uns números e eu não sabia o que era, nem o que poderia ser. Você não viu eu puxar a imagem pregada na porta e ler atrás a sua letra inconfundível, das cartas de amor e dos bilhetes deixados na portaria do trabalho.

Você disse que ela se chama Beatriz. Você não disse, mas eu ouvi você dizer, que era o tudo que você deixaria eu ficar sabendo.