sábado, 14 de novembro de 2009

Branco

Ela me disse que não sabia como, mas havia acontecido. Ela parecia muito bonita mesmo falando com algum desespero, sem maquiagem, sem cabeleireiro. A boca sem batom era quase pele e mais bonita, ela tinha olheiras e os olhos num verde cinzento, demorei a me concentrar nas palavras, como se nota.

Ela tinha um tom de voz que eu conhecia de outros carnavais, mas dessa vez era mais encorpado. Nós dois, o bule de café, meu cigarro desmanchando no ar, as palavras dela. As palavras dela, claro, as palavras dela. As palavras que eu tanto gostava de ouvir, que eu tanto lutava pra saírem aos borbotões, feito cascata, feito chuva, feito chope gelado em dia de sol. Mulher precisa saber, e ela sabia, falar.

Ela desarrumada, a coisa mais linda que eu havia visto. Sem sutiã, sem perfume, sem subterfúgios, sem atalhos. O dia estava feio, estava sol e quente, abafado, sem nuvens. A gente estava na cozinha e parecia a antesala do consultório do sete-peles. Nenhum dos dois estava de ressaca, nenhum dos sois sorria, não havia bom-humor, não havia leveza. Ainda assim, linda, a prova viva que mulher bonita é a melhor invenção do mundo.

Ela falava e de repente falou, eu ouvi e finalmente escutei, ela falou que queria tirar, queria tirar o bebê, queria matar o nosso filho, o nosso filho era um acidente e talvez a gente fosse um acidente e acidentes acontecem, a vida é feita de acidentes mas a vida é inadiável, os acidentes são remediáveis. Ela falou só que queria tirar, o restante foi elucubração minha. Tão jovens e elucubrantes, nós dois, tão jovens e obscenos.

Ela iria tirar, havia se decidido que era o ponto final, ela não ia suportar me olhar após o aborto. Na verdade, ela disse que não suportava mais a idéia do meu pau duro dentro dela, as conseqüências, éramos tão jovens e nos machucando, nos querendo mais, nos matando assim. Ela não queria ter bebê coisa alguma, ela queria outras coisas e nenhum bebê dentro dela, nenhum leite pingando de seu peito no meio da noite, nenhuma estria na barriga antes do tempo.

Barriga, ela teria uma imensa barriga em quatro ou cinco meses. Ficaria maior. Ela reteria líquidos. Ela esqueceria das coisas. Ela teria desejos e enjôos. Ela ficaria linda. Eu falei pra ela, não deixei de verbalizar, que ela ficaria linda de barriga. Foi idiota mas quando a gente é mais novo, tende a ser idiota mesmo e nem se dá conta. Ela teve o mesmo pensamento que eu, da perspectiva dela. Ela barriguda, os ubres lactantes, o umbigo pontudo, os pés inchados. Me chamou de maluco e deu meia volta, saiu corredor afora.

Quando voltou, trazia a minha mochila, dentro da mochila meus pertences pra passar o final de semana com ela e as palavras que eu não queria ouvir, que era pra eu me mandar, ir embora, não ligar, não procurar mais e quando ela achasse que devia, ela mandava sinal de vida. Ela nem chorou.

Antes de deixar aquilo tudo para trás, eu pensei em resistir. Pensei em dizer que ela não estava sozinha e que eu tinha amor por ela, amor e medo, amor e tesão, amor e posse. Pensei em dizer que eu daria um jeito. Pensei em tomá-la nos braços e deixar os corpos se entenderem. Foi o que tencionei executar, me levantei da cadeira e manobrei em direção à sua boca. Ela apenas me afastou e disse que não. Melhor não, ela disse.

Fiquei então pendente no vazio do mundo que o mundo subitamente se mostrou. Pai de uma criança que jamais iria nascer, amor de uma mulher que não tornaria a ter.

Levei mais ou menos duas semanas para cair em mim. Ela nunca mais deu sinal de vida. Ela teve três filhos, nenhum deles meus. Nunca tive filhos. Outro dia tive um sonho com ela, ela nua me esperando na cama de olhos fechados.

Dos bicos dos peitos, vazava leite. Tinha um gosto bom.

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