terça-feira, 20 de novembro de 2007

Festa de casamento

Marinélia casou-se com Otaviano na ocasião em que completava seus vinte e três anos de vida, havia recém ingressado em sua carreira de advogada, legalmente aprovada no exame da Ordem e contratada no escritório de um tio de uma amiga. De modo que ao celebrar a segunda década de união com o engenheiro civil Otaviano Almeida de Castro, Marinélia Afonso Quevedo encontrava-se adentrando em seus quarenta e três anos de vida.

A experiência de trabalhar como advogada cível e testemunhar como o amor de décadas pode virar ruína e miséria em coisa de uma ligação erroneamente atendida fez de Marinélia esposa fiel e mui bem disposta amante. Temia, mais do que perder Otaviano, que conheceu em seus tempos universitários na militância estudantil, temia o processo que seria essa perda. Viu coisas horrorosas e ouviu palavras impensáveis entre casais que pareciam predestinados à eternidade do amor e da compreensão. Viu a verdadeira face do ódio surgir numa sala por causa de discos velhos, pares de meias e bichos de estimação.

Em duas décadas de convivência, Marinélia ainda sentia prazer em se deixar sorrir para Otaviano, bigode cerrado e cabelos nem tanto. Marinélia ainda sentia aquele ligeiro frêmito no regaço ao perceber que o marido a procurava na cama durante a noite e ao sentir que não o fazia hipocritamente. O que mais admirava era o carinho que ele sempre tinha por ela e que se revelava em sutilezas que somente um casal pode compreender - Otaviano não acendia um cigarro desde a lua-de-mel, nunca esquecia que ela gostava de tomar seu leite matinal com meia colher de mel e mandou instalar no jardim da casa um pequeno viveiro de periquitos, que lembravam a Marinélia o carinho de seu pai com seus passarinhos.

Na ocasião de vinte anos de casados, o marido providenciou um jantar no restaurante onde havia pedido a mão da recém-advogada em casamento. Isso foi feito com dois meses de antecipação, em segredo e o convite enviado a apenas quatro casais íntimos dos de Castro. Foi quando Marinélia temeu que o marido andava ocultando algo dela, algo que dizia a ambos. Ela reparava que havia uma tensão em Otaviano sempre que alguém da família ou do círculo de amizades mencionava a ocasião que se aproximava, os vinte anos. Por vezes, ele se distanciava da conversa, em outras tentava mudar o rumo da conversa e havia flagrado até uma troca de olhares cúmplice entre o marido e um amigo.

Aquela troca de olhares, um óbvio código de cumplicidade entre dois amigos ofendeu a integridade de Marinélia enquanto esposa dedicada. Duas noites mais tarde, ela percebeu o marido se insinuar através de um beijo a mais antes de deitarem, uma carícia marota em seus lóbulos da orelha. Achou que o marido estava mais firme que o usual, a musculatura retesada de algum esforço físico durante o dia e mesmo uma mordida no ombro esquerdo recebeu de Otaviano. Teve certeza que o marido havia saído do seu notável bom-senso matrimonial e arranjara uma amante que o levava a tal fúria sexual. Quis chorar, mas só conseguiu gozar como não desconfiava mais que fosse acontecer.

O passar dos dias rumo à data fatal - ela se enchia de certezas que a data que avexava o esposo, das bodas do casal, seria o desfecho de seu casamento - desesperavam mudamente Marinélia, que enxergava naqueles casais que acompanhava definhar melancolicamente um retrato em sépia de seu futuro próximo. Otaviano, de tão bem-disposto, instalara no quarto uma bicicleta ergométrica, decerto para ampliar seu fôlego a fim de dar conta da fogosa amante que iluminava o semblante do quarentão. A duas semanas da comemoração, Marinélia caiu em prantos durante uma audiência. Pediu uma licença de um mês e o escritório concordou, na verdade sua chefia sugeriu dois meses - um dos sócios da banca era grande confidente de Otaviano e acreditava que Marinélia e o amigo sairiam para uma segunda lua-de-mel.

Otaviano era pura alegria na manhã da festa. Saiu da cama mais cedo que o habitual e deixou um bilhete que naquele dia precisaria viajar urgentemente a trabalho, com um pedido de desculpas e deixou avisado que o leite com mel estava na geladeira. Também na surdina, Marinélia gania ao perceber que o pior se realizava, o marido fugia sorrateiramente sem nem ao menos fazer menção da data. Ouviu o carro do marido partir em marcha lenta e ganhar a rua. Leu o bilhete mentiroso e viu o copo de leite cínico na geladeira. Decidiu que não suportaria nada daquilo. Ela mesma daria um ponto final. Sabia de tudo, tinha noção das evidências: o vigor físico recém-adquirido, a fúria sexual dos tempos de namoro, a bicicleta ergométrica, a cumplicidade entre amigos, as ligações em códigos.

Pôs-se a fazer as malas ainda de manhã. Ainda atendeu a ligação do celular de Otaviano, ele combinando que se encontraria com ela para jantarem fora, precisava conversar. Desligou rápido antes de qualquer resposta e pelo resto do dia ela só conseguiu falar com a caixa postal. Ela achava incrível da desfaçatez de Otaviano em marcar no mesmo local onde noivaram aquela conversa abjeta, de confissões de mentiras e de pedidos de separação. Não, não aceitaria tal absurdo. Arrumou suas malas e, como fizera o tarântula, deixou seu aparelho celular fora de área. Ordenou um táxi para o aeroporto e comprou uma passagem no primeiro vôo de ida para Salvador, onde morava a mãe. Não deixou bilhete.

Otaviano não compreendia nada. Esperou até o dia raiar. Seu amigo que era sócio na firma de Marinélia o levou em casa. Contou ao amigo que, havia meses, corria o boato na firma de que Marinélia mantinha um tórrido romance com um trainee. O rapaz era um mulato baiano, as mulheres fantasiam com ele em voz alta pelos corredores. Talvez ela recobrasse a razão e tudo voltasse ao normal. Era uma pena, dizia o amigo, porque aquela seria uma bela festa de casamento.

Um comentário:

Anônimo disse...

Lindo blog, delícia de ver e de sentir.
Parabéns!
Gostei muito blog muito giro;)