segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Dengo

“Ai, menino.” Ela reclamou logo no segundo minuto. Era uma graça até reclamando, sei porque adorava reclamar – de mim, pelo menos. O ralho ficava mais no gestual das mãos que nas palavras propriamente ditas. Depois de certo tempo de convivência, eu gostava de ouvir seus ais e meninos.

Ela tinha um mistério. Nem sei porque escrevi isso, que ela tinha um mistério – quero dizer, sei o porquê, mas não sei explicar o mistério e então vai parecer meio tolo tentar escrever a respeito. Era como se entre cada arremedo de frase, a cada negaceada de olhar ou entre cada riso dissimulado ela me sonegasse uma verdade muito definitiva sobre si. Tenho certeza que ela ria de mim pelas costas ou caçoava minhas tentativas de alcançar seu significado secretamente.

Não era só isso, tinha mais. Ela possuía algo no modo como caminhava também. É fácil a pessoa ouvir – no caso, ler – “modo como caminhava” e pensar (fatalmente) que estou me referindo às nádegas da moça. Ledo engano. Porque, a despeito de suas voluptosas e matreiras ancas, falo de algo mais, que havia no ato dela caminhar, não a presença física, mas como o tempo reduzia o passo e as coisas perdiam a importância subitamente, perdiam o som, perdiam a cor. Talvez tudo isto fosse somente eu perdido dentro de mim à procura daqueles caminhos que ela percorria. Mistérios, como deixei explícito.

Retorno ao segundo minuto, ela ralhou e eu fiquei em suspenso. Perguntei o que houve. Podia ser a música mas aí não era minha culpa, a música vinha da rua, do carro de som que passava naquele instante. Não era a música, ela sentenciou bastante séria, definitivamente mulher, mulher como poucas eu havia de conhecer. A mão arrumou a franja que já lhe caía aos olhos.

Eu só queria fazer tudo certo, pelo menos naqueles instantes. Sabe quando você se depara com uma chance na vida de fazer bem feito algo que você desejou bastante por muito tempo? Então. Ela sabia disso, que ela era bem mais que as outras, que nem foram tantas, mas foram outras, não ela. Ela gostava de ouvir quando eu ligava tarde da noite ou cedo de manhã pra lhe gracejar, havia uma sinceridade na sua voz, no modo como ela pronunciava meu nome.

Acontecia também que ela me escrevia e eram cartas longuíssimas – sim, cartas escritas à mão, envelopadas, seladas, devidamente endereçadas. Não eram cartas de amor, eram outra coisa. As cartas traziam a meus olhos os desamores que a gente arranja em nome do amor, os passos em falso e os conseqüentes tropeços. Traziam, sobretudo, ela, que se dava ao exercício de reservar tempo e palavras à mão para mim.

Eu sabia de antemão que o amor lhe fez largar uma faculdade, desistir de um par de empregos, trocar o número do celular algumas vezes, quase desistir do mestrado e interromper uma dieta que funcionava. Sabia igualmente que um sem número de vezes ela havia dado um pé no amor por um sorriso que funcionara, por uma conversa calhorda ou em função de desejo puro e simples – quando simplesmente não se cansava de tudo, das flores, dos jantares, das convenções e das tentações frustradas.

Quando ela disparou aquele torpedo no meu celular avisando que estava a caminho eu simplesmente deveria saber. Ela tocou o interfone e subiu para o meu apartamento. Ela entrou com pressa porta adentro. Havia se arrumado, mas não muito. Sorriu e se postou à minha frente e pediu um beijo. Não havia promessas, não havia confissões, não havia delongas. Havia, porém, eu, um homem que sonhava demais ou quiçá beijava de menos. Quando ela tirou a blusa, não resisti a dar um passo pra trás para olhar aquela criatura que povoava sonetos dentro de meus banhos. E decerto perdi o foco daquele instante, que era dela, apesar de meu também.

“Já tive amor demais pra essa vida, menino, e amor cansa.” Amor cansa, ela disse.

Ela não queria saber do meu dengo, só do meu quengo.

Um comentário:

Rosi disse...

Amor cansa mesmo... Mas como viver sem amar???