Até aquele dia, um domingo, sol morno, vento calmo, eu nunca havia ganhado um beijo de uma mulher usando um chapeu. Parece insignificante olhando assim, de fora, mas não é. Era um chapeu coco, preto, que eu nem sabia que havia no guarda-roupas dela.
Eu olhava para aquele maldito chapeu e tentava não pensar nela em lágrimas debaixo dele, me atirando pratos, me disparando nomes feios. Eu procurava ignorar que daquele jeito, sob aquele chapeu irrisório e mortal, aquela mulher estava linda, envolvente e bela como em raríssimas vezes, inclusas aí algumas das primeiras e últimas vezes onde ela se mostrou a meus olhos despida.
Chamava-se Sofia essa criatura que eu havia amado um dia como decerto não seria mais capaz de fazer com qualquer outra coisa ou outra mulher, inclusive ela mesma. Eis a minha desgraça que eu deveria transmitir de alguma forma para Sofia: o romance que houvéramos protagonizado estava chegando ao fim naquele instante. Ela, debaixo de seu chapeu coco preto, talvez nem desconfiasse.
Não pense que faço pouco de Sofia. Digo que talvez ela não desconfiasse de minhas intenções naquele domingo porque às vezes as ruínas são assim, silenciosas, lentas, unilaterais. Não estávamos em vias de nada de extraordinário, poder-se-ia dizer um narrador em terceira pessoa - péssimo narrador, totalmente omisso de uma das personagens, talvez porque Sofia sempre iria roubar para si as atenções, os olhares, os desejos.
Na noite anterior mesmo eu havia, sem a menor sombra de falsidade, surpreendido a ela com um jantar, desses com trilha sonora, molho encorpado, cerveja importada acompanhando. Ela continuava a mulher mais linda de nossos tempos. Eu é que não fui dormir como deveria. Estava mal, devo dizer, porque infeliz.
E aí, vamos lá, infeliz com o quê? Sofia ninava a mulher mais mulher do mundo, aparentemente, porque havia eu de certa forma - e eu infeliz porque havia ela. O pensamento, este pensamento, veio e quis apaziguá-lo, mandá-lo pastar, fingir que não era comigo. Eu amava Sofia. Sim, mas aquele amor já dava seus sinais de desgaste e cansaço. O que eu amava em Sofia, e eu amava bastante coisa nela, começou a rarear em certas ocasiões particulares.
Primeiro foi um tom de voz em especial. Uma discussão boba, uma coisa cotidiana de casal, ela queria almoçar fora, eu precisava terminar um relatório para enviar a um colega de trabalho, veio o tom de voz. Parecia uma forma particular de espezinhar o íntimo do próximo. Comecei a notar que o tom de voz reaparecia sem aviso em outros contextos.
Veio uma trepada ruim. Trepadas ruins acontecem. Aposto, inclusive, que a grande maioria das trepadas em nossa vida são ruins, precisam ser assim, para que aquelas realmente boas sobressaiam. Essa foi especialmente ruim, e ela sacramentou a ruindade simulando um orgasmo. Que merda. Foi exatamente o que me ocorreu então, que merda. Três anos e só hoje fui descobrir que não sei comer direito Sofia.
Eu juntei essas duas impressões e comecei, instintivamente, a buscar nela o que havia de pior. Reparei que ela detestava os programas de televisão que eu queria ver, que ela aceitava passivamente minhas roupas, que ela só comia meu molho branco por educação. Tudo em silêncio, sorrindo, amando. E se ela também já antevisse o fim e começasse a se precaver, a buscar sinais, a procurar outro homem, um que a fizesse gozar, soubesse temperar o molho branco, soubesse usar mocassins? Era madrugada e eu estava cansado para conclusões mais elaboradas. E meio de pileque.
Eu estava infeliz, sim, diabos. Infeliz porque havia ela. Adormeci. Dormi sem problemas daí em diante. Quando acordei, domingo, estava resoluto. Basta de ser infeliz. Então, Sofia mais uma vez esfregou nas minhas fuças o quão bonita uma mulher pode se mostrar. Ela me deu até um beijo. A estrutura completamente puída por cupins e ela querendo levantar outro andar, era isso?
Fiz menção de acender um cigarro e ela, pela primeira vez, segurou a mão do isqueiro e pediu: "Por favor, não". Não sorria mais. Disse que não podia mais, que não amava mais e que não ficaria mais.
Talvez algum dia ela fosse capaz de explicar melhor tudo, se é que haveria algo mais a se explicar. Ela disse ainda, e também que era melhor sair dali da sala do meu modesto apartamento.
Por favor, não, supliquei, o cigarro pendente e apagado nos lábios. Patético.
Um comentário:
Que lindo este texto! #romanticfeelings... Hahahahaha
Toda paixão tem um fim.
Mas as histórias de amor são construídas nas pequenas diferenças, nos singelos cigarros, nos temperos (ou falta deles) de cada molho preparado. Sorrisos e orgasmos fingidos, acontecem... Mas o amor e a cumplicidade ficam.
Que Sofia encontre, em sua nova paixão, seu verdadeiro amor ou que continue buscando!
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