A viúva chorava, tão novinha, ainda rija nas carnes, devia andar pelos trinta. Vestiu-se com pudor para o velório, um vestido negro e até um negro véu, uma máscara mortuária para ela também. Estava cercada pelas amigas, também professoras primárias, também lacrimosas, pareciam – veja só minha peraltice – uma colméia de viúvas, mas não, só a moça do vestido negro, do negro véu, a mão direita sobre o caixão aberto é que havia de fato ficado sem o marido. As outras sequer possuíam um exemplar para perdê-lo.
Os amigos foram chegando aos poucos, trôpegos, sem ter como acreditar no bizarro da cena. Santo homem. Marido exemplar. O Marcos. Marquinhos.
Entravam cabisbaixos e logo se davam com a realidade, o cheiro das coroas de flores, das velas, da gente triste, o pai do Marcos, o filho do Marcos, a viúva, sobretudo a viúva, um colosso de mulher quando em cores mais alegres e ambientes mais festivos.
Ninguém sabia ao certo como havia morrido aquele homem. A mulher dissera aos peritos que encontrou seu amado agonizante no quarto de André, um amigo do casal que dava uma festa na noite anterior. Sem maiores delongas, ele morreu.
Muito triste.
Para o Inspetor Sampaio, muito conveniente também. A viúva chorava e Sampaio ia olhando, que debaixo das lágrimas, se antevia o decote farto, farto em demasia ele diria, as lágrimas também se demoravam ali. Mandou examinar o cadáver e dispensou a mulher.
Marcos, amigo das piores horas. Ele vai fazer falta. Não se fazem mais homens feito Marcos, minha filha. Era um galhofeiro, um dos melhores. Marcos era um irmão pra mim. Amava como se ama um filho, minha querida. Era longa e comovente a lista dos pêsames. A viúva se comovia com cada um. Alguns dos amigos entretanto, não deixavam de notar como as ancas da mulher venciam o luto do vestido e mostravam-se bem vivas.
O André, este estava completamente apoplético. Além de num estado de pileque sem igual. Dois amigos o sustentavam de pé naquela hora dura, um em cada braço. Foi o primeiro a ver o Marcos desfalecido nos braços da esposa, tornada naquele instante viúva. Ela agachada e metida numa saia que fazia o desenho daquele corpo tão digno em seu pecado, aquela cintura impossível. Então se deu conta que seu melhor amigo estava no chão, desfalecido. Entendeu tudo num átimo antes de mergulhar naquele torpor medonho.
O caixão já estava sendo fechado para tomar o cortejo do túmulo quando o Inspetor Sampaio adentrou no velório, solene, fez o sinal da cruz diante do Cristo que pendia acima da cabeça do defunto e se achegou da viúva. Ela levantou o véu e ele viu a boca sem batom mas recheada de promessas que ele não poderia revelar ali. Outros dois agentes o acompanhavam e foi com muita dignidade que ele anunciou à viúva que ela estava presa, sob a acusação de assassinato da vítima Marcos Emílio Revega, o Marquinhos, o Marquinhos! Assassinato! Matou o próprio marido, vejam só, a facínora, a cínica – chorando sobre a vítima.
Ela ficou lívida a princípio, mas não ofereceu resistência. Seu único capricho foi lançar um último olhar e beijar a testa do marido morto. Algemada, foi retirada do velório que se tornou bafafá. A polícia não quis prestar maiores esclarecimentos, preferiu enfiar a moça na viatura e todos arrancaram em silêncio.
Diante do inspetor na delegacia, ela, a viúva, confessou. Matei meu marido. Matei. Matei! Sampaio não era homem de convulsões e apenas acenou para um dos auxiliares, que foi buscar um copo d’água enquanto ele emprestava à moça uma caixa de lenços de papel. Sampaio perguntou, após o copo d’água, por que aquilo.
Um santo homem. Marido exemplar. Amigo do peito. Pai dedicado. Empregado querido.
A viúva então se mostrou em toda a sua imponência, a voz saiu finalmente, as lágrimas secaram, os lábios coraram outra vez.
Foi o homem mais doido que eu tive, doutor. Um horror. Por ele eu fazia de tudo, apanhava na cara, de mão fechada, se fosse preciso. Na cara! Ele gostava de me submeter a si das mais diversas formas. Ele me amarrava na cama, me amordaçava, às vezes prendia meus pés juntos e me possuía assim, por trás! Por ele, tive que beber mijo certa feita, e ele delirava, chegava a desfalecer de êxtase.
Só teve uma única coisa que nunca dei pra ele. Naquela festa, ele propôs um jogo. Aquele puto. Queria me deixar no quarto do melhor amigo toda amarrada, um consolo no meio dos quartos, pra me descobrirem lá no meio da festa. Foi demais, doutor. Eu posso ser muita coisa, mas dentro de casa. Na casa dos outros já era demais! Ele se exaltou e puxou o cinto para me imobilizar e eu resisti. Tomei-lhe o cinto. Ele vacilou e me vi de posse de seu pescoço, através da peça de couro. Foi assim.
Sampaio suspirou longamente.
A viúva então, mais bela do que nunca, deixou-se cair na cadeira. Chorava outra vez. Meu homem. Matei meu homem.
Meu santo homem.
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